sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

GUERRA COLONIAL: AS ACÇÕES ENCOBERTAS (2)

“OS NOSSOS HOMENS NO MALAUI”

Começaremos, precisamente, pela aventura - clandestina - prolongada, a mais prolongada accão encoberta, que intervieram vários oficiais da Reserva Naval e da Legião Naval de Portugal ao serviço da Marinha do Malaui.

Ela começou, precisamente, em 1968 e acabou em 1974. 

Teve vários protagonistas ao longo desses anos.

Mas, o ineditismo recaiu sobre o primeiro. 

E isto porque ele foi, por assim dizer, “O nosso primeiro homem no Malaui”.

      O lago Niassa servia (e serve) de grande bacia de transporte para três países, hoje todos os independentes: Tanzânia, Malaui e Moçambique.

Com a independência da Tanzânia e o início da guerra de guerrilhas em Moçambique, o lago Niassa, o terceiro maior de África, com 8,4 milhões de quilómetros quadrados, adquiriu, a partir de 1964, uma nova importância estratégico-militar.

A Tanzânia, antigo Tanganica, emergiu na sua independência como país anti-colonialista militante, tornando-se refúgio e base de apoio dos movimentos independentistas das antigas colónias portuguesas.

Por seu turno, o Malaui, antiga Niassalândia, buscou uma solução de meio termo, optando por relações bilaterais continuadas com Portugal, não hostilizando o seu vizinho moçambicano, governado por um sistema colonial, por onde passava a maior parte da sua ligação ao mar. 

Permitia, ao mesmo tempo, uma certa guarida, mas muito controlada e sempre vigiada, à guerrilha.

Portugal procurou, pois, atrair, - e conseguiu-o -, para o seu lado, o líder do país, Hastings Kamuzu Banda, cujo cônsul honorário em Moçambique era o engenheiro Jorge Jardim, um aventureiro, que estivera no governo de António Salazar, como subsecretário de Estado, e se radicara em Moçambique, adquirindo uma preponderância que esteve sempre ligada à sua capacidade de se interligar com o ditador em Lisboa e com a sua polícia política.

(Jardim é o exemplo de como a estrutura dirigente do regime se envolvia numa nebulosa de aventureirismo, que raiava um marginalismo político assumido. 

Na realidade, o engenheiro Jorge Jardim tinha um “orçamento” estatal que só ele geria, sem prestar contas, o qual, segundo o falecido marechal Costa Gomes, que foi comandante-chefe das Forças Armadas em Moçambique, atingia “um oitavo do Orçamento de Estado para as Forças Armadas”.  

O seu único interlocutor real era o chefe do governo, primeiro, António Salazar, segundo Marcelo Caetano.

Os chefes militares permitiram que Jardim interferisse no planeamento e acções castrenses, inclusive em actos de claro abandalhamento da ética militar. 

São numerosos os casos citados por protagonistas operacionais na guerra que eram orientados por Jardim à revelia da estrutura das Forças Armadas).

A nível militar, no caso do Lago Niassa, as autoridades coloniais decidiram dar-lhe uma maior capacidade em presença naval e ali estabelecer uma base de média envergadura com pequenos portos-quartéis de fácil e rápida navegação.

Três povoações vieram a ficar conhecidas nessa época para as tropas coloniais: Meponda, Cobué e Metangula.

Assim, em Novembro de 1965, a partir de Lumbo (Moçambique) iniciou-se uma operação de transporte terrestre até ao Lago Niassa das Lanchas de Fiscalização Pequenas (LFP), Marte e Mercúrio, de 44 toneladas de deslocamento cada uma. 

Foi uma viagem épica, não só destas lanchas mas de outras, nomeadamente de desembarque, que, infelizmente, está nos domínios dos relatórios militares.




Fotos retirados do blog Pica na Orelha (picaorelha.blogspot.com)

Estas embarcações vieram a juntar-se às LFP Regulus e Castor, que, desde 1963, se encontravam baseadas em Metangula.

Pouco depois, na baía de Metangula, chegaram a estar atracadas ao seu cais seis lanchas de fiscalização pequenas (LFP): Castor, Regulus, Marte, Mercúrio; Saturno e Urano. 

Além das tropas normais de quadrícula do Exército, começaram a actuar na zona ribeirinha unidades de fuzileiros especiais.

Todavia, sob o ponto de vista estratégico, o regime colonial começou a planear forma de actuação que fosse além das suas águas territoriais.

Foi, deste modo, que, quer o Comando Naval em Moçambique, quer a própria rede de informações do governo de Salazar, através de Jardim, pensaram e levaram a cabo uma operação para “entrar” num certo controlo da movimentação da guerrilha e  vigiar as águas dos dois outros países. 

O “receptáculo” ideal para a movimentação naval era (e foi), precisamente, o Malaui.

Começaram negociações para “fazer passar” uma das lanchas para o vizinho Malaui.  Elas chegaram a bom porto em 1968. O alvo da troca foi a lancha Castor.

A lancha seria transferida para Nkata-Bay, a povoação, na parte malauiana do Lago Niassa, onde se instalaria a primeira unidade militar naval daquele Estado anglófilo.

Foi preparada uma cerimónia especial para, em Metangula – a designação oficial da povoação era Augusto Cardoso -, se organizar, formalmente, a transferência da embarcação para o Estado do Malaui, sob a forma de empréstimo.

Assim a 5 de Agosto de 1968, numa cerimónia em Augusto Cardoso, representantes de Portugal e do Malaui assistiram à entrega da Lancha de Fiscalização Pequena (LFP)  de nome “Castor” que foi baptizada com o nome de “John Chilembwe”.

Aparentemente, tratava-se de uma actividade enquadrada numa cooperação bilateral entre Portugal e o Malaui, na realidade estava já em fase adiantada uma das mais bem sucedidas operações secretas efectuadas pelo regime colonial português.

Nos arquivos nacionais consultados não foi possível encontrar relatórios ou documentos oficiais sobre esta operação e os seus protagonistas, que terminou com o 25 de Abril de 1974.

Em concreto, no Arquivo de Marinha, instalado na antiga Fábrica da Cordoaria, em Lisboa, para consulta, não existem quaisquer relatórios de Estado da operação. 

Arquivado apenas um documento oficial - o que podemos consultar - que relata o acto de transferência da embarcação de uma entidade portuguesa para a do Malaui.

Nos documentos da PIDE/DGS, guardados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, não se conseguiu obter documentação sobre aquela operação.

No documento depositado no Arquivo da Marinha, reporta-se, assim, o acto legal de transferência da embarcação: “a 5 de Agosto de 1968, em Augusto Cardoso/Metangula, e conforme notas diplomáticas tomadas entre Portugal e o Malawi”, foi a lancha de fiscalização “Castor”, da Armada Portuguesa, transaccionada “por empréstimo”.

Participaram nesta transacção, pela parte portuguesa, o então comodoro Tierno Bagulho, Comandante Naval de Moçambique, e “em representação” do governo do Malawi, Aleke Banda, ministro da Economia e presidente do Malawi Youngers Pionners. Tudo muito formal.

(Tierno Bagulho, que ascendeu depois a almirante e ocupou o cargo de Presidente do Supremo Tribunal Militar, foi um dos três oficiais-generais das Forças Armadas portuguesas, que se recusaram em Março de 1974, após o  “golpe das Caldas”, a participar no chamado “beija-mão” ao então Presidente do Conselho de Ministros Marcelo Caetano. Os outros dois foram os generais Costa Gomes e António de Spínola, que exerciam, então, respectivamente os cargos de Chefe e Vice-Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas portuguesas. Os três já faleceram).

Mas, na pasta onde se encontra o documento, está arquivado um relato sucinto, privado, feito nos anos 80, para a comissão COLOREDO (a Comissão que recolheu dados e informações sobre a actividade nas antigas colónias), do primeiro comandante da lancha sob a orientação malauiana, um oficial da Reserva Naval portuguesa que “se passou para o outro lado”, que nos dá algumas pistas sobre o que estava em jogo.   

Manuel Alexandre de Sousa Pinto Agrelos, engenheiro de profissão, que era o comandante português da lancha “Mercúrio”, tornou-se, para os efeitos desejados, “um desertor”, ainda antes da transacção, e assistiu à entrega já como oficial da Marinha do Malaui.



Manuel Agrellos, hoje, um pacífico homem dedicado ao golfe


Na cerimónia de Metangula, o oficial português, que mandou arriar a bandeira, chamava-se Francisco Freire e “o oficial malauiano que a recebeu e mandou içar fui”, referencia Agrelos no seu relato.


NRP Mercúrio, ainda com bandeira portuguesa no Niassa


Descreve que a lancha foi baptizada com o nome de John Chilembwe, um herói do Malawi.

Agrellos assinala, mesmo, no seu depoimento escrito, que Chilembwe foi, na visão do outro lado, “o primeiro africano malauiano a mandar cortar a cabeça a um branco”, segundo recordação transmitida pelo próprio.

Com o comandante da lancha seguiram o marinheiro telegrafista Mário Fernandes e o cabo fogueiro Martinica, que foram graduados, respectivamente, em segundo e primeiro sargentos da Marinha de Guerra do Malaui. 

O resto da guarnição pertencia aos Young Pioneers, uma espécie de “guarda pretoriana” do regime ditatorial de Hastings Banda.

Agrellos faz questão de assinalar, no seu breve relatório, que, entre os presentes, na cerimónia de entrega estava o engenheiro Jorge Jardim, que ali se encontrava com o estatuto de cônsul honorário do Malaui em Moçambique.

Jardim ficou a ser o garante do pagamento do salário a Manuel Agrellos, que o depositava numa conta especial de um banco, a que o comandante da lancha tinha acesso.

Manuel Agrellos continuava, no entanto, a depender da hierarquia da Marinha de Guerra portuguesa e era a esta que ele prestava contas.

Mas, Jorge Jardim tornava-se, na prática, o interlocutor das “informações” que o oficial português da Marinha do Malaui lhe fornecia e transmitia às autoridades coloniais em Moçambique e a Lisboa.

Na sua nova função, Manuel Agrellos foi, algo mais, que um simples oficial comandante de uma pequena lancha. 

Na realidade, tornou-se no Ministro da Marinha malauiana. Sem qualquer apoio, sem experiência, ele montou toda a estrutura de informação que veio a servir os seus sucessores.

O “agente especial” português participou em reuniões do Conselho de Ministros do Malaui e teve vários encontros com o então Chefe de Estado do país  Hastings Banda.

Movimentava-se, perfeitamente, no interior da elite dirigente daquele país, vizinho de Moçambique.  Frequentava, inclusivé, os Clubes chiques, onde predominavam os “assessores” anglo-saxónicos.

Do ponto de vista estratégico-militar, com a lancha, Agrelos controlava, em grande medida, todo o movimento de embarcações que andavam, de um lado para outro, no Lago Niassa. Incluindo, portanto, as que serviam de apoio logístico à FRELIMO.

Manuel Agrellos teve contactos, de diferentes tipos, mais “profundos” ou mais “ligeiros”, com altos dirigentes da FRELIMO, incluindo Eduardo Mondlane, mas o actual Presidente da Federação Portuguesa ainda não se prontificou até agora a fazer as revelações do “muito que soube”. 

No relatório que entregou à COLOREDO, ele revela um dos aspectos menos conhecidos da “parceria” que envolvia a passagem da embarcação que comandava para o país: a flotilha de lanchas de Metangula passava a ser abastecida em gasóleo vindo do Malaui.

A Lancha de Desembarque Média (LDM), que ia buscar o combustível, levava um logótipo da SONAP e os membros da guarnição “fardas” da mesma companhia petrolífera portuguesa.

Hastings Banda era um parceiro privilegiado do regime português em Moçambique, mas tinha de se manter discreto, mostrar aos países vizinhos anti-colonialistas que não tinha relações directas com o Exército colonial luso.

Agrelos foi, durante muito tempo, um enigma para muitos dos “brancos” que gravitavam, de uma maneira ou doutra, nas mesmas funções no interior das Forças Armadas do Malawi, principalmente os ingleses.

Quem seria aquele branco, que se apresentava completamente desligado das Forças Armadas portuguesas, e que falava fluentemente inglês?

(Agrellos, que esteve ao serviço da TAP como comandante e instrutor, pertence a uma família de proprietários rurais da zona do Vinho do Porto, que fora educado culturalmente, num ambiente anglófilo aburguesado daquela região do país. Exerce o cargo de Presidente da Federação Portuguesa de Golfe e a direcção da sua congénere europeia).

Com o tempo, aceitaram-no e começou a frequentar os selectos clubes “europeus” mantidos, apesar da independência, naquela antiga colónia.

A sua missão “tipo James Bond” decorreu, pacificamente, até que terminou a sua comissão de serviço em 1969.

Manuel Agrellos pertenceu ao 9/o Curso de Formação de Oficiais da Reserva Naval (CFORN). Foi alistado a 3 de Setembro de 1966 e ascendeu a aspirante a 15 de Março de 1967.

O jovem primeiro oficial comandante da lancha “John Chilembwe” terminou “a sua comissão” em 1969, e através de Jorge Jardim, Hasting Banda e o governador colonial português concordaram com a continuidade de outros oficiais portugueses.

Assim, o “agente especial” Agrellos deu lugar a outro oficial da Marinha da Reserva Naval que prosseguiu a missão.

O “nosso homem no Malaui” transmitiu o facho ao seu sucessor, e depois outros se seguiram até ao 25 de Abril de 1974.

Jorge Jardim, o cônsul de Banda em Moçambique, manteve-se como o “pivô” de toda a comunidade da informação portuguesa (e não só) na região que a fazia chegar ao seu destino. Naturalmente, como contrapartida, garantia a estabilidade do regime do ditador malauiano.

Todavia, a função de “agente James Bond” português esteve quase a terminar em tragédia.

Quando se dá o 25 de Abril em Portugal, o papel de Ministro da Marinha exercido por portugueses já tinha desaparecido. As relações eram agora mais distantes.

Nesta altura,  eram dois os oficiais portugueses a comandar idêntico número de lanchas. Além da Castor, estava emprestada uma segunda lancha a “Regulus”, que foi rebaptizada de Chiluza.

Os seus comandantes eram agora oficiais fuzileiros. O primeiro, mais antigo, já veterano de guerra era o segundo-tenente Lhano Preto que dirigia a John Chilembwe, o segundo mais “marreta” e com “pouco tempo de mato” era o subtenente, mas tarde promovido a segundo-tenente Berbereia Ribeiro Moniz. 

Os dois pertenciam ao 9º Destacamento de Fuzileiros Especiais

As lanchas navegavam agora com cadetes dos Youngers Pioneers, que se adestravam para exercerem o comando. Havia um certo distanciamento de Blantyre das autoridades moçambicanas. Os tempos estavam a mudar.

A revolução portuguesa transtornou definitivamente os planos de Hastings Banda. O regime português democrático passou a ser olhado de soslaio. E os oficiais portugueses constataram essa mudança.

Em Julho são chamados à capital malauiana. Recebem a indicação da embaixada portuguesa de que o melhor é voltar a ter um passaporte português e se preparar para o pior. Aliás, um dos oficiais, Lhano Preto neste período esteve retido momentaneamente, mas foi mandado seguir para Monkey Bay. 

Quando chegaram ao local verificaram que as lanchas tinham desaparecido. Vieram a saber que os cadetes as fizeram seguir para uma baia mais a sul, onde se esconderam.

As “manobras” do regime do Malawi foram comunicadas ao comando da esquadrilha do Niassa, que, por outro lado, recebera a indicação de Lisboa para fazer a entregar, formal e definitiva, das duas lanchas ao Malawi.

Lago Niassa, onde se vê o cais da base de Metângula
Foi nesta situação de ambiguidade que o comandante da esquadrilha o então primeiro-tenente de Marinha Ribeiro Ferreira (hoje vice-almirante reformado) decidiu zarpar para resgatar os oficiais que julgava detidos e em má situação.

Em acto belicoso, entrou em Monkey Bay, preparado para uma batalha naval com o apoio de duas lanchas de fiscalização, uma pequena lancha de fiscalização de pesca, uma Lancha de Desembarque Média e um destacamento de fuzileiros.

Não foi preciso usar a força. Afinal, os oficiais portugueses já estavam em liberdade e aguardava na praia de Monkey Bay a chegada da frota para se fazer a transferência pacífica das lanchas ao serviço do Malawi.

Os “agentes” portugueses regressaram às suas unidades. 

Deixaram de ser pagos por contas “secretas” às ordens de Jorge Jardim. Este passava a fora da lei. Refugiara-se no Malawi. Era agora “persona nom grata” do novo regime português.

Ainda foi organizada uma reunião em pleno Lago Niassa com um general do Exército português, visando, possivelmente, uma “solução” branca independente para Moçambique, mas os tempos deixaram de ser de feição para o engenheiro agrónomo, que não fizera a tropa, mas gostava de fazer as guerras de forma dissimulada e com um poder acrescido que a vivência directa com António Salazar lhe dera.



Os “nossos homens” no Malawi, alguns ainda vivos, são hoje pacatos cidadãos que recordam essas memórias.


1 comentário:

  1. Fantástica história, ainda por cima com pessoas que conheci e conheço. O Eng Jorge Jardim com quem jantei um dia na Beira em casa dos meus primos Saul e Aida Brandão e o Manuel Agrellos, meu colega na TAP. Eu também participei na protecção ao transporte daquelas Lanchas em 1968, como piloto da Força Aérea, destacado em Vila Cabral. Tenho um Blogue onde conto alguns episódios da guerra do ultramar "Rio dos Bons Sinais" e estou precisamente a escrever algo sobre as lanchas. Gostava de ali reproduzir o seu artigo resumidamente, com óbvia menção ao seu Blogue. Parabéns por este serviço público que faz. Gabriel Cavaleiro.

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