sexta-feira, 25 de março de 2011

QUEM É A RESPONSABILIDADE DE ESTARMOS À RASCA?


De diferentes origens, enviaram-me este texto do escritor moçambicano Mia Couto, acompanhado de um assentimento "Concordo".


Eu discordo. É um texto de puro moralismo de um senhor que é hoje escritor badalado e foi comissário político do regime actualmente no poder em Moçambique, co-responsável da situação actual. Dirão alguns: está afastado. Certo, mas, quando se é um homem político, que se pretende interveniente, não se pode deixar de explicar a sua mudança.


Vou transcrever o texto e apor a minha posição. A memória é importante para debater sobre o presente e o futuro.


"Mia Couto - Geração à Rasca - A Nossa Culpa "Um dia, isto tinha de acontecer. Existe uma geração à rasca? Existe mais do que uma! Certamente! Está à rasca a geração dos pais que educaram os seus meninos numa abastança caprichosa, protegendo-os de dificuldades e escondendo-lhes as agruras da vida. Está à rasca a geração dos filhos que nunca foram ensinados a lidar com frustrações. A ironia de tudo isto é que os jovens que agora se dizem (e também estão) à rasca são os que mais tiveram tudo. Nunca nenhuma geração foi, como esta, tão privilegiada na sua infância e na sua adolescência. E nunca a sociedade exigiu tão pouco aos seus jovens como lhes tem sido exigido nos últimos anos. Deslumbradas com a melhoria significativa das condições de vida, a minha geração e as seguintes (actualmente entre os 30 e os 50 anos) vingaram-se das dificuldades em que foram criadas, no antes ou no pós 1974, e quiseram dar aos seus filhos o melhor. Ansiosos por sublimar as suas próprias frustrações, os pais investiram nos seus descendentes: proporcionaram-lhes os estudos que fazem deles a geração mais qualificada de sempre (já lá vamos...), mas também lhes deram uma vida desafogada, mimos e mordomias, entradas nos locais de diversão, cartas de condução e 1º automóvel, depósitos de combustível cheios, dinheiro no bolso para que nada lhes faltasse. Mesmo quando as expectativas de primeiro emprego saíram goradas, a família continuou presente, a garantir aos filhos cama, mesa e roupa lavada. Durante anos, acreditaram estes pais e estas mães estar a fazer o melhor; o dinheiro ia chegando para comprar (quase) tudo, quantas vezes em substituição de princípios e de uma educação para a qual não trabalho, garante do ordenado com que se compra (quase) tudo. E éramos (quase) todos felizes. Depois, veio a crise, o aumento do custo de vida, o desemprego, ... A vaquinha emagreceu, feneceu, secou. Os pais à rasca não vão a um concerto, mas os seus rebentos enchem Pavilhões Atlânticos e festivais de música e bares e discotecas onde não se entra à borla nem se consome fiado. Os pais à rasca deixaram de ir ao restaurante, para poderem continuar a pagar restaurante aos filhos, num país onde uma festa de aniversário de adolescente que se preza é no restaurante e vedada a pais. São pais que contam os cêntimos para pagar à rasca as contas da água e da luz e do resto, e que abdicam dos seus pequenos prazeres para que os filhos não prescindam da internet de banda larga a alta velocidade, nem dos qualquercoisaphones ou pads, sempre de última geração. São estes pais mesmo à rasca, que já não aguentam, que começam a ter de dizer "não". É um "não" que nunca ensinaram os filhos a ouvir, e que por isso eles não suportam, nem compreendem, porque eles têm direitos, porque eles têm necessidades, porque eles têm expectativas, porque lhes disseram que eles são muito bons e eles querem, e querem, querem o que já ninguém lhes pode dar! A sociedade colhe assim hoje os frutos do que semeou durante pelo menos duas décadas. Eis agora uma geração de pais impotentes e frustrados. Eis agora uma geração jovem altamente qualificada, que andou muito por escolas e universidades mas que estudou pouco e que aprendeu e sabe na proporção do que estudou. Uma geração que colecciona diplomas com que o país lhes alimenta o ego insuflado, mas que são uma ilusão, pois correspondem a pouco conhecimento teórico e a duvidosa capacidade operacional. Eis uma geração que vai a toda a parte, mas que não sabe estar em sítio nenhum. Uma geração que tem acesso a informação sem que isso dotada de trôpegas competências de leitura e interpretação da realidade em que se insere. Eis uma geração habituada a comunicar por abreviaturas e frustrada por não poder abreviar do mesmo modo o caminho para o sucesso. Uma geração que deseja saltar as etapas da ascensão social à mesma velocidade que queimou etapas de crescimento. Uma geração que distingue mal a diferença entre emprego e trabalho, ambicionando mais aquele do que este, num tempo em que nem um nem outro abundam. Eis uma geração que, de repente, se apercebeu que não manda no mundo como mandou nos pais e, que agora quer ditar regras à sociedade como as foi ditando à escola, alarvemente e sem maneiras. Eis uma geração tão habituada ao muito e ao supérfluo que o pouco não lhe chega e o acessório se lhe tornou indispensável. Eis uma geração consumista, insaciável e completamente desorientada. Eis uma geração preparadinha para ser arrastada, para servir de montada a quem é exímio na arte de cavalgar demagogicamente sobre o desespero alheio. Há talento e cultura e capacidade e competência e solidariedade e Claro que há. Conheço uns bons e,valentes que detêm estas capacidades-características não encaixam no retrato colectivo, pouco se identificam com os seus contemporâneos, e nem são esses que se queixam assim (embora estejam à rasca, como todos nós). Chego a ter a impressão de que, se alguns jovens mais inflamados pudessem, atirariam ao tapete os seus contemporâneos que trabalham bem, os que são empreendedores, os que conseguem bons resultados académicos, porque, que inveja!, que chatice!, são betinhos, cromos que só estorvam os outros (como se viu no último Prós e Contras) e, oh, injustiça!, já estão a ser capazes de abarbatar bons ordenados e a subir na vida. E nós, os mais velhos, estaremos em vias de ser caçados à entrada dos nossos locais de trabalho, para deixarmos livres os invejados lugares a que alguns acham ter direito e, que pelos vistos - e a acreditar no que ultimamente ouvimos de algumas almas - ocupamos injusta, imerecida e indevidamente?!!! Novos e velhos, todos estamos à rasca. Apesar do tom desta minha prosa, o que eu tenho mesmo é pena destes jovens. Tudo o que atrás escrevi serve apenas para demonstrar a minha firme convicção de que a culpa não é deles. A culpa de tudo isto é nossa, que não soubemos formar nem educar, nem fazer melhor, mas é uma culpa que morre solteira, porque é de todos, e a sociedade não consegue, não quer, não pode assumi-la. Curiosamente, não é desta culpa maior que os jovens agora nos acusam. Haverá mais triste prova do nosso falhanço?"



Mia Couto termina com uma pergunta patética "Haverá mais triste prova do nosso falhanço?".


É uma manobra airosa de evitar responder ao que está realmente em causa: o sistema económico e social capitalista.


Pela descrição de Couto, tudo o que está a suceder aparece do nada, parece uma hecatombe etérea, que destroi a vida das pessoas, como se de um feitiço se tratasse.


Ora, a culpa "não é nossa", do assalariado. É uma ilusão mascarar que a razão do que está verdadeiramente a suceder não é o desejo de melhorar o bem-estar material e social de pais e filhos, não é da educação pessoal ou social, dada com maior ou menor rigor, mas o poder autêntico que está a subverter o caminho conquistado para uma nova sociedade.


E que, enquanto não se exigir, com todas as letras e sem superfúgios, a abolição desse poder - do Capital - e das suas relações sociais em que ele está assente, as lamentações piedosas de pessoas, como Mia Couto, surgem como discursos moralistas sem qualquer valor.


Aqui sim, a culpa é nossa. Porque baixamos as defesas para levar a verdadeira educação política aos seio dos nossos filhos, prepará-los para luta sem contemplações contra o sistema que nos coloca à rasca.


Porque para muitos, com o colapso do sistema social soviético, consideraram que em causa estava o socialismo, e não admitiram que esse sistema era somente uma forma autoritária de capitalismo, fomentado pelo Estado, que se dizia socialista, e, então, optaram pela via mais fácil de continuar a actividade humana e política, sustentando que o capitalismo poderia vir a ser transformado em "democrático e socialista".


Abandonaram a via de refazer toda a opção pela abolição do sistema capitalista "concorrente" mais desenvolvido e acutilante, o capitalismo liberal dominando pelo sistema financeiro internacional.


Isso, sim, aconteceu. Houve derrota revolucionária. Houve retrocesso ideológico.


Não foi transmitido aos filhos, porque era mais duro, mais ameaçador para os pequenos burgueses, que se intitulavam revolucionários, e entraram na ilusão de que seria possivel "viver melhor" entrando na gestão e cumplicidade do próprio sistema que os engolfinhava e fazia definhar o avanço para o progresso da humanidade.


Foram muitos, realmente, os que ficaram encerrados na mesquinhez e tacanhez de que o capitalismo se podia humanizar, e agora lançam as lamúrias quando se coloca na ordem do dia a opção pelo enfrentamento duro, pela necessidade de uma ruptura política e social, que poderá ser violenta.


É fácil deitar a culpa para cima dos baixo, e não se aponta o dedo a quem é, verdadeiramente, responsável.



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